sexta-feira, 9 de maio de 2008

O desafio da arte na era dos extremos


Israel Pedrosa reúne em ensaios, todo um arcabouço critico do seu tempo e as suas grandes contradições
Kleber Torres

Uma revisão critica do nosso tempo, esta seria a melhor definição para compreender “Na contramão dos preconceitos estéticos da era dos extremos”. O livro reúne um conjunto de ensaios, conferências, entrevistas e anotações criticas de Israel Pedrosa, um artista plástico que ganhou dimensão internacional com o fenômeno da cor inexistente, projeto que ocupou sua atividade pictórica ao longo dos últimos 40 anos e é objeto de livros, pesquisas e referências na área da física aplicada.
O conceito básico de era dos extremos é o mesmo do historiador Eric Hobsbawm, que o definia como o período tenso da guerra fria marcado pelo confronto aberto entre o comunismo e o capitalismo. Nesse período, o quadro do anticomunismo implanta-se como um ideário das classes dominante em escala mundial, manifestando-se em conflitos como a Guerra da Coréia e a divisão da Alemanha Ocidental e Oriental separadas por um muro de concreto e cimento que veio abaixo nos anos 90, com o processo da gloablização.
Mas uma outra definição mais ampla para a era dos extremos, foi dada pelo musico Yehudi Menahin, ao considera-lo como o século que despertou as maiores esperanças já concebidas pela humanidade, mas que em contrapartida, ao mesmo tempo, destruiu todas as ilusões e ideais.

Portinari

O seu livro começa a partir de uma revisão critica de Cândido Portinari, de quem foi aluno e amigo pessoal, que além de ser um artista responsável por uma verdadeira revolução nas artes plásticas brasileiras, também tinha participação na vida política do país e denunciava as suas grandes mazelas e as graves contradições econômicas, sociais e culturais.
Para Pedrosa, que em 80 anos acumulou uma expressiva bagagem cultural e conhecimento: “A obra de Portinari se transformou num símbolo e bandeira dos ideais artísticos, democráticos e libertários”. Também faz referencia à propria história do Brasil, com fatos com a criação do então Partido Comunista Brasileiro, que agregou trabalhadores e artistas envolvidos com um ideal igualitário e na crença de um homem novo que se contrapunha a Adolfo Hitler, com seu ideário nazista de uma raça ariana.
No ensaio, ele observa que o surrealismo, um movimento antagônico ao realismo socialista seria uma proposta trotskista e faz um alerta dramático do nosso tempo: a desumanização da arte, que privilegia a tecnologia e perde cada vez mais a sua essência humanista.

Muralistas

Um outro ensaio critico faz referências a David Alfaro Siqueiros: revolucionário, político, artista e um dos principais teóricos da arte realista, pública, popular e heróica, sendo também corpo e alma do moderno muralismo mexicano, que teve a participação de artistas expressivos como Diego Rivera e Orozco. Ele não só liderou o movimento muralista, como também exerceu ao longo da sua vida uma atividade política para anunciar a chegada de um novo tempo.
O livro faz referências também a uma viagem de Siqueiros ao Brasil, onde realizou uma palestra para diversos artistas, depois de um período de exílio no Uruguai, quando retornava ao México.
Israel Pedrosa aborda ainda o domínio do fenômeno físico da cor inexistente, que nada tem a ver com ilusão de ótica, pois é captada por equipamentos eletrônicos e mesmo pelas máquinas de impressão gráfica convencionais a partir da alternância de cores básicas. O processo tem como base a teoria das cores, desenvolvida por Leonardo da Vinci e um trabalho teórico de Goethe.
O principio da cor inexistente influencia a indústria gráfica, a fotografia a cores, o cinema e a televisão analógica e digital. Segundo o artista: “O que eu denominei cor inxistente é a cor que surge no fundo branco da tela, entre as tramas de várias gamas, de uma mesma cor, levadas ao paroxismo pela ação dos contrastes”.
Ele também conta que a realização deste trabalho, ao longo do tempo, tornou-se a realização da sua existência. No momento, Pedrosa desenvolve um outro projeto que denominou Dez Aulas Magistrais, com a produção da réplica da obra de grandes autores.
No trabalho também são feitas referências criticas ao poeta Geir de Campos, que defendia a idéia de um homem novo, com seus anseios, proposições, ações, qualidades morais e ética. No ensaio sobre Cantigas de Acordar Mulheres, um dos legados do poeta, que é considerado um canto provisório, dialético, metamítico, matamórfico e metacritico.
Comparando o poeta Geir de Campos a uma raça em extinção, o autor o considera um dos homens para quem a poesia é algo vivo e humanamente valido por si só. Ele também entende que a poesia deve deixar no leitor a lembrança de um sentimento vivido e comunicado.
O conjunto de ensaios também trata do nacionalista Monteiro Lobato, que via a pobreza e o atraso brasileiros como decorrência da subordinação econômica e cultural das nossas elites aos interesses dos grupos internacionais. Fala também dos artistas plásticos Qurino e Hilda Campofiorito, Martinho da Vila, Newton Rezende e Iberê Camargo entre outras pessoas com quem conviveu e que também deixaram um legado á cultura brasileira numa era de extremos, que é uma eterna dialética hoje com ares globalizados e tecnologicamente sofisticados.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Um resgate lírico da história grapiúna

Livro resgata de forma lírica os detalhes de uma cidade que cresceu e de certa forma não preservou as suas raízes

A reunião de crônicas e memórias formam o conteúdo de Retalhos, de Helena Borborema, falecida esta semana, um livro que resgata histórias e imagens de Itabuna, uma cidade que viu crescer e da qual traz recordações amenas, como a de uma misteriosa casa de vidros azuis e que acabou desaparecendo com um progresso envolvente e avassalador, que trouxe no seu bojo ruas, avenidas, casas, edifícios, além de mudanças nos costumes e tradições.
A autora também lembrava da antiga estrada de ferro cuja estação ficava no lugar do edifício onde funciona a FTC e que no passado recente abrigava o Centro Administrativo Municipal e a Câmara de Vereadores. Ela lamenta a desativação da ferrovia, que teve seus trilhos e dormentes arrancados: “seus vagões sucateados, destruídos pela ação do tempo, sem a piedade dos homens que da sua existência nada guardaram, nem como lembrança que se preserva de um ente querido morto”.

Paulino Vieira

Quem recebe destaque especial em um dos capítulos do livro é a Coronel Paulino Vieira, antiga rua da Laranjeira, onde a escritora nasceu, que tinha uma intensa movimentação aos sábados e ficava próxima da antiga feira que funcionava no centro da cidade, na praça Adami: “Na rua havia residências simples e casas boas. Nas décadas de vinte e trinta, nela residiam os coronéis do cacau, Oscar Marinho falcão -numa bonita casa cheia de janelas e com um portão de ferro e um pequeno jardim ao lado- e o austero Maneca Brandão (Neca), que usava roupa escura com colete, relógio de ouro com corrente na algibeira e chapéu de feltro”.
Também residiam na mesma rua quatro famílias de origem libnanesa: os Barifaldi Hirs, os Habib, os Midlej e os Agle, além dos familiares de Francisco Ribeiro, Arthur Pita, Narciso Rocha, o farmacêutico Benigno Azevedo, o advogado Lafayette Borborema, o coronel Laudelino Lorens e Carlos Maron, que depois foi transformada na sede do Itabuna Clube e onde hoje dá lugar ao prédio do Banco do Brasil na praça Olinto Leoni.
Helena Borborema fala também das mudanças sofridas pela Paulino Vieira, que hoje está sendo transformada num shopping a céu aberto: “Seus moradores aos poucos foram saindo, e um comércio dinâmico ali surgiu. Quase todas as casas foram modificadas. Onde havia janelas surgiram vitrinas. Das casas dos coronéis, uma foi demolida e outra modificada. A rua perdeu a alegria pueril do passado, mas conservou a sua vitalidade sob outros aspectos, como nos mostra hoje o seu comercio atuante”


Festas


Retalhos também abre espaço também para festas de Natal, com as tradições dos presépios e da Missa do Galo; da Semana Santa e do Carnaval com seus blocos de mascarados, que se concentravam entre a praça Adami e a rua J.J.Seabra, hoje avenida Cinqüentenário: “O Carnaval era feito de música serpentina e confetes. As músicas, aprendidas pelo povo dois meses antes através das rádios, esquentavam a boca e faziam a animação de todos. Marchas, marchas-racnho, musicas carnavalescas puras, de grandes compositores cariocas. Não havia tro-elétrico, não se pagava altos cachês a cantores importados, nem se onerava os cofres da Prefeitura, porque o Carnaval era feito pelo próprio povo, com suas fantasias e animação”.
Ela destacou ainda o corso, com carros de capota arriada que percorriam o centro da cidade, com jovens fantasiados, que lançavam serpentinas e confetes em verdadeiras batalhas coloridas. Entre os foliões mais criativos, a autora destaca a participação de Narciso Rocha, que teve uma fantasia de Diabo admirada pela sua confecção primorosa, num Carnaval alegre, animado, sem licenciosidade e sem camisinha.
Helena Borborema também resgatou imagens da praça Olinto Leoni, com seus flamboyants floridos e que era o ponto de encontro de jovens e enamorados. O livro também fala da preocupação ecológica da escritora com relação ao rio Cachoeira, que serviu de estrada para os pioneiros e que hoje, poluído cada vez mais, estaria doente, triste e abandonado, como se fosse um paciente agonizante
O livro também resgata a história de personagens que ajudaram a construir a cidade, como o médico Ápio Lopes e figuras anônimas e esquecidas como o carregador Prego, Bomboinha, Dona Albertina – que vendia mingau de tapioca cheirando a canela na rua do Quartel Velho, hoje Rui Barbosa-: “Tomar chocolate com bolinhos no bar, comprar doce no tabuleiro de Bomboinha, beber mingau gostoso de dona Albertina de manhã cedo, mas a mim, criança, eram instantes de grande satisfação. A soma de todas essas pequenas alegrias acrescida de outros prazeres oferecidos pela cidade aos meus olhos que se abriam para a vida, alicerçavam o meu bem querer às coisas e as pessoas da minha terra”.

Quem foi Helena Borborema


Morre a escritora
Helena Borborema



A vida cultural itabunense teve uma perda significativa, com a morte da professora formada pela Faculdade de Filosofia de Itabuna e escritora Helena Borborema, que morreu aos 87 anos, na madrugada de ontem em sua residência na rua Lafayete Borborema, que leva o nome do seu pai, o primeiro advogado a atuar em Itabuna. Professora aposentada de geografia, ela deixou dois livros publicados "Terras do Sul", uma homenagem a Itabuna quando o município completou 80 anos de emancipação político-administrativa e depois Retalhos, que resgatava imagens e histórias da cidade que viveu e amou. O seu sepultamento ocorreu na tarde de ontem, no Cemitério do Campo Santo.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Reinvenção de Ulisses


A REINVENÇÃO

DE ULISSES

de James Joyce/Antônio

Houaiss/Kleber Torres

1996

TELEMAQUIA

PARTE I
SOMBRAS

Vegetissombras flutuavam silentes na paz matinal desde o topo da escada ao mar que ele contemplava. Da borda para fora o espelho do mar branquejava; esporeado por precípites pés lucífogos. Colo branco do mar pardo. Ictos gêmeos , dois a dois. Mãos dedilhando harpicordas fundindo-lhes os acordes geminados. Undialvas palavras acopladas tremeluzindo sobre a maré sombria.

GURI

Sou o guri

que sente e ri

com o invisível.

JÚBILO

Jubilo fantasmal, revoluto: almiscarperfumado.

Nem mais a um canto ruminar.

SONHO

Em sonho, silentemente, ela lhe viera a ele, seu corpo gasto dentro de largas vestes funéreas exalando um odor de cera e de pau-rosa, seu hálito pendido sobre ele com mudas palavras secretas, um esmaecido odor de cinzas molhadas.

Olhos perscrutadores, fixando-se-me da morte, para sacudir e dobrar minha alma. Em mim somente. O círio dos mortos a iluminar sua agonia. Lume agonizante sobre a face torturada. Seu áspero respirar ruidoso estertorando-se de horror, enquanto todos rezavam aos seus pés. Seus olhos sobre mim a redobrar-me.

Necrófago !

Mascador de cadáveres! Não, mãe. Deixa-me ser e deixa-me viver.

ESQUECIMENTO

Sol quente brincando sobre o mar. O níquel do vaso de barbear brilhava esquecido, sobre o parapeito.

Por que deveria eu levá-lo para baixo ? Ou deixá-lo aí o dia inteiro, amizade esquecida ?

CRIAÇÃO

Criação do nada e milagres

e um Deus personalizado. Só há um sentido para a palavra.

ADÃO E EVA

Minha décima segunda costela desapareceu sou o Ubermensch Kinch o desdentado, e eu, o super-homem.

FORMA

Nutridos e nutrientes cérebros ao meu redor: sob lâmpadas incandescentes , pingentes com filamentos pulsando desmaiados: e na escuridão da minha mente uma preguiça do infra-mundo , relutando, avessa à claridade, remexendo suas sobras escamosas de dragão.

Pensamento é o pensamento de pensamento.

Claridade tranqüila. A alma é de certo modo tudo o que é: a alma é a forma das formas.

Tranqüilidade súbita, vasta, candescente: forma das formas.

SEGREDOS

Segredos, silentes, pétreos,

moram nos palácios sombrios

dos corações de ambos os dois:

segredos exaustos de sua tirania:

tiranos desejosos de serem destronados.

MAR

O senhor dos mares. Seus marifrígidos olhos fitavam por sobre a baía vazia: à história cabe a culpa: por sobre mim e por sobre minhas palavras,

inabominantes.

TEMPO

O tempo abalado ressalta,

abalo após abalo:

Justas, lamaçal e algara de batalhas,

enregelhado mortivômito dos degolados, um berro de aguilhões alanceados fartados nas vísceras sanguinolentas de homens.

VIDA

Muitos erros, muitos malogros, mas não o pecado.

Agora, ao fim dos meus dias, continuo lutador.

Mas combaterei pelo direito até o fim.

ADÃO E EVA

Esposa e companheira de Adão Kadmon: Heva, Eva nua. Ela não teve embigo. Contempla.

Ventre sem jaça, bojando-se ancho, broquel de velino reteso, não, alvicúmulo títrico, oriente e imortal, elevando-se de pereternidade em pereternidade. Matriz do pecado.

EUTANÁSIA

Guerreando a vida inteira quanto à contratransmagnifcandjudeibumbatancialidade. Heresiarca malzodiacado. Num lavatório grego deu o último suspiro: eutanásia.

CHORO

Senhor.

Sim. senhor.

Não, senhor.

Jesus chorou:

pudera,por Cristo.

CASAS

Casas de decadência,

a minha,

a sua

e todas.


LUZ

Luz dourada sobre o mar,

sobre o areal,

sobre a amurada.

O sol ali está,

as árvores esguias, as casas limão.

OLHOS

Olhos verdes, eu vos vejo.

Colmilho, sinto-o .

Gente lasciva.

AFOGADO

Quero seja sua vida ainda sua, a minha seja minha.

Um homem afogado.

Seus olhos humanos berram para mim no horror de sua morte.

Eu... com eles juntos no fundo... eu não podia salvá-la. Águas: morte amarga : perdida.

APOSTA

Uma mulher e um homem.

Vejo a saiota dela.

Arregaçada, aposto...

MORTE

Canicrânio, canífaro, os olhos no chão, move-se para um grande alvo.

Ah, pobre canicorpo.

Aqui jaz o corpo de um pobre canicorpo.

SONO


No sono o signo líquido lhe diz a sua hora, ordena-lhe o despertar.

Nuptileito, nataleito, leito mortal,

espectriciriado.

Ele chega, pálido vampiro, por borrascas os seus olhos,

seu velame morcegueiro ensangüentando o mar, boca contra o beijo de sua, dela, boca.

ORAL

Seus lábios sugavam e abocanhavam descarnados lábios de vento: boca contra o ventre dela.

Umba, ominiventrante tumba.

Sua boca amoldava-se exalando alento, inefado: uuiihah : regido de planetas catarácticos, globóides, labaredantes, rugindo juralonjuralonjuralonjura.

SIGNOS

Arrojo esta sombra términa de mim, hominiforma ineluctável, chamo-a de volta. Intérmina , seria ela minha, forma de minha forma ? Quem me percebe aqui ? Quem em lugar algum jamais lerá estas escritas palavras? Signos em campo branco.

TRUQUE

Clique faz o truque.

Achas minhas palavras obscuras.

Escuridade está em nossas almas, não achas ?

Mais maviosa.

Nossas almas , vergonhiferidas por nossos pecados, apegam-se a nós ainda mais, uma mulher apegando-se ao seu amante, e mais e mais.

TOCA-ME

Toca-me.

Olhos doces.

Mão doce doce doce.

Estou sozinha aqui.

Oh toca-me logo, agora.

Qual é essa palavra sabida de todos os homens?

Estou mesmo aqui sozinha.

Triste também.

Toca-me, toca-me.

DEUS

Deus fez-se homem fez-se montanha

fez-se ganso bernaco

fez-se montanha plumosa.

Suspiros mortos

que eu vivente respiro,

pisada poeira morta,

devoro vísceras urinárias de todo morto.

OCEANO

Um maritrânsito este,

olhos castanhos salazulados.

Marimorte, a mais doce de todas as mortes conhecidas pelo homem .

Velho Pai Oceano.

ONDE ?

Onde? por terras vesperais . A tarde se achará a si mesma. Sim, a tarde se achará a si mesma em mim, sem mim.

Todos os dias vão ao seu fim.

A propósito, qual é o próximo ?

CENA

Depositou a meleca seca pinçada de uma narina no gume de uma pedra, com cuidado.

Quanto ao mais, olhe quem quiser.

Atrás.

Talvez haja alguém.

ODISSÉIA

PARTE II

NÃO

Não, não assim.

Uma terra sáfara, deserto nu.

Lago vulcânico, o mar morto:

nem peixes, nem plantas, mergulhando fundo na terra.

Vento nenhum levantaria aquelas ondas, metal cinza, águas brumosas envenenadas.

De enxofre chamavam-lhe a chuva caindo: as cidades da planície: Sodoma, Gomorra, Edom.

Nomes mortos todos.

Um mar morto numa terra morta, cinza e vermelha. Velha agora.

Nutrira a mais velha, a primeira raça. Uma bruxa curvada cruzou do Cassidy crispando pelo gargalo uma garrafa graduada.

A mais velha gente.

Erraram bem longe por sobre toda a terra, de cativeiro em cativeiro, multiplicando-se, morrendo, nascendo em toda parte.

E jaz lá agora.

Já não podia gerar.

Morta : de uma velha morta :

a cinzenta vulva afundada do mundo.

Desolação.

NINGUÉM

Antes de assentar-se espiou por uma fresta a janela do vizinho. O rei estava em seu tesouro.

Ninguém.

Refestelado no trono desdobrou o jornal

virando páginas sobre os joelhos nus.

Algo novo e fácil.

Não há grande pressa

TEMPO

Horas da tarde, garotas de gaze gris.

Horas da noite depois negras com adagas e meias máscaras.

Idéia poética rosa, depois dourada, depois cinzenta, depois negra.

Ademais veraz para com a vida também.

Dia, depois a noite

ENTERRO

A que horas é o enterro ?

Melhor procurar no jornal .

COM

Com ela uma vez no parque na safa.

Escuro de abafa.

Que marafa.

Tira da polícia.

O nome e o endereço

ela então deu

com o meu lero-lero lero-lero lero.

PALAVRA

Um tordo.

Um tredo.

Há uma palavra

tredo,

que exprime isso.

MORTE


Não mais sofrer.

Não mais despertar.

Ser de ninguém.

FUNERAIS

Funerais pelo mundo

em toda parte e todo minuto.

Enterrando-se às carradas aceleradíssimas.

Milhares por hora.

Gente demais neste mundo.

LÁZARO

Velhas bombas enferrujadas:

tudo o mais é uma história.

A ressurreição e a vida.

Uma vez que estás morto, estás morto.

Essa idéia do juízo final.

Pipocando todos em suas tumbas.

Levanta-te Lázaro.

E ele chegou em quinto

e perdeu o lugar.

Levanta!

Dia final.

CADÁVER

Um cadáver é carne deteriorada.

Bem e o que é queijo ?

Cadáver de leite.

FANTASMA

O fantasmas anda suavemente,

biscoitamente,

contra a vidraça poeirenta da janela.

RIMAS

Boca, touca.

É boca touca de algum modo ?

Ou a touca uma boca?

Deve haver algo.

Touca, oca, louca, pouca, sopa.

Rimas:

dois homens iguais nos trajes, parecendo o mesmo, dois a dois.

NILO

O Nilo,

Criança , homem , efígie.

Nas barracas nilóticas

as crianças se ajoelham,

berço de juncais:

um homem destro no combate:

petriocornudo, petribarbudo,

coração de pedra.

OBSERVAÇÃO

Nota o olhar que esta mulher lhe deu ao passar.

Cruel.

Sexo desleal.

PALAVRAS INÚTEIS

Bondes passavam uns após outros, indo, vindo,

retinindo.

Palavras inúteis.

As coisas continuam as mesmas;

dia após dia: pelotões de polícia marchando adiante, para trás; bondes indo, vindo.

DIZQUE

Uma cidadada trespassando, outra cidadada chegando, trespassando também: outra chegando, trespassando.

Casas , filas de casas, ruas, milhas de pavimentos, tijolos amontoados, pedras.

Mudando de mãos.

Este dono, aquele.

proprietário não morre nunca, dizque.

PIRÂMIDES

Pirâmides sobre a areia.

Construídos de pão e cebolas.

Escravos.

Muralhas da China.

Babilônia.

Pedras grandes deixadas.

Torres redondas.

O resto, entulho,

subúrbios encarrapachados,

assopapados,

casas cogumelos de Kervan,

construídas de vento.

Refúgio da noite.

NADA

Nem um é algo.

Essa é realmente a péssima hora do dia.

Vitalidade.

Baça lúgubre: odeio essa hora. Sinto como se tivesse sido engolido e vomitado.

SIM

A jovem lua de maio está brilhando, amor.

Ele ao lado dela.

Cotovelo, braço.

Ele.

O facho do vagalume está faiscando, amor.

Alisação. Dedos. Pergunta.

Resposta. Sim.

VOZES

Vozes altas.

Soda solaquecida.

Arreios distantes.

Tudo por uma mulher, lar e casas, tramas de seda, pratarias, frutas suculentas, especiarias de Jafa.

Agendath Netaim .

Riqueza do mundo

SANGUE


Sangue fresco quente se recomenda para a consumição.

Sangue é sempre necessário.

Insidioso.

Lambê-lo , esfunando quente, xaroposo.

Vampiros esfaimados.

AMOR

Vida juvenil, seus lábios me davam num abrocho. Macios, quentes, gomigelatinosos lábios grudentos.

Flores eram seus olhos, me toma, olhos quentes.

Seixos rolavam.

Ela jazia queda.

Uma cabra. Ninguém.

AMOR II

Selvagemente eu jazia sobre ela, beijava-a; olhos, seus lábios, seu pescoço reteso, pulsando, peitos de fêmea plena em sua blusa de véu de monja, mamilos cheios ponteando.

Quente eu a linguei.

Eu era beijado. Tudo rendendo ela emaranhava meus cabelos.

Beijada, ala beijava-me.

EU

Eu.

E eu agora.

Pegadas, as moscas zuniam.

BELEZA

Beleza: encurva-se, curvas são beleza.

Deusas feiçoadas, Vênus, Juno: curvas que o mundo admira.

Posso vê-las no museu da biblioteca de pé no vestíbulo redondo, nuas deusas.

MISTICISMO

Espirituais sem forma, Pai, Verbo e Espírito Santo, Ominipater, o homem celestial.

Hiesos Kristos, mágico da beleza, o Logos que sofre em nós a todo instante.

Isto veramente é aquilo.

Sou o fogo no altar.

Sou o butiro sacrificial.


DEUS

Deus : rumor na rua : muito peripatético.

APEGO

Apega-te ao agora, ao aqui, todo o futuro mergulha no passado.

MORTE

Leito de morte da mãe.

Velas. Espelho velado.

Quem me pôs neste mundo lá jaz, bronzepálpebras, sobre umas poucas flores baratas.

BRINCADEIRA

Peter Piper

picou um pito

da pica de pico de picante pimenta.

AQUILES

Aqui ele pondera sobre coisas que não foram: o que César tivera

vivendo feito se houvera crido no harúspice: O que poderia ter sido: possibilidades do possível como possível: coisas não sabidas: que nome Aquiles usara quando vivera entre mulheres.

ACASALAMENTO

Em momento de acasalar.

Júpiter, manda-lhes uma boa maré de tesão.

Sim ué,

pombarrola com ela.

Eva.

Ventrigal pecado nu.

Uma serpente a coleia,

colmilhobeija.

JUNO

Cílios de olhos de Juno, violetas.

Ela passeia.

Uma vida é tuda.

Um corpo.

Faze. Mas faze.

Longe, num bodum de tesão e sordidez, mãos apalpam brancuras

BALBÚRDIA

Porta fechada. Cela. Dia.

Escutam. Três. Eles.

Eu tu ele eles.

Vamos, balbúrdia.


POEIRA

A poeira entelara a vitrina e os teréns do mostruário.

A poeira escurecia dos dedos instrumentais com unhas vulturinas.

A poeira dormia sobre baças espirais de bronze e prata .

Losangos de cinábrio,

sobre rubis, pedras leprosas e viniscuras.

ELA

Ela está se afogando.

Remordida.

Salvá-la.

Remordida.

Todos contra nós.

Ela me afogará com ela,

olhos e cabelos.

Madeixas corridas de cabelos

bodelha do mar em tôrno de mim, meu coração , minha alma.

Verde morte salina.

PAI

Nunca mais o vi.

Morte , é isso.

Papai está morto.

Meu pai está morto.

Ele me pediu para ser bom filho para mamãe.

Eu não podia entender as outras coisas que ele queria dizer

mas vi a língua e os dentes dele tentando dizer isto melhor. Pobre papai.

Era o senhor Dignam, meu pai.

Espero que agora esteja no purgatório,

porque não se confessou com o padre Conroy na tarde de sábado.

ENGANO

Engano. Palavra doce.

Mas olha!

As estrelas brilhantes fenecem.

Ó Rosa !

Notas cricricrilando resposta.

Castela.

Rompe a manhã.

Ginga sege ginga, seginha.

PECADO

Perto, seus olhos passavam.

Doçuras do pecado.

Doces são as doçuras.

Do pecado

ECOS

Um tordo. Uma toda.

Seu sopro, ave canora, bons dentes de que se orgulha, flauteava com coita flébil.

É perdido. Rico som.

Eis duas notas numa.

Todo novo demais renôvo

é perdido no ovo.

Eco.

Quão doce a resposta.

Como isso é feito ?

Tudo é perdido agora.

Plangente ele assoviava.

Queda, entrega , perda.

INTERROGAÇÃO

Palavras?

Música ?

Não :

é o que é por trás.

MÚSICA

La la la ri.

Sinto-me tão triste hoje.

La ri.

Tão sol. Ré.

MÚSICA II

Mar, vento, folhas

trovão, águas, vacas mugindo, o mercado de gado, galos, galinhas não cucuricam, serpentes que tsíam.

Há música por toda parte.

OLHAR

Olhar :

olhar, olhar, olhar

olhar, olhar:

tu nos olhas.

MUDANÇA

Tudo mudado.

Esquecido.

Os jovens são velhos.

Seu fio enferrujado pelo sereno.

UM

Um.

Que é que está voando por aí ?

Andorinha ?

Morcego provavelmente.

Pensa que sou árvore, tão cego.

Os pássaros não têm olfato ?

Metempsicose.

MULHER

Feiosa:

nenhuma mulher pensa que é.

Amar, mentir e exceler pois o amanhã é morrer.

ARANHA

A aranha tece sua teia na solidão.

O rato, noturno

espreita do seu buraco.

A maldição é nela .

É assombrada.

Terra de assassino.

TUDO

Tudo é ido.

Agendath é uma terra sáfara, berço de corujas e da poupa burricega.

Netaim, a áurea

já não é.

E pelas estradas das núvens elas chegam, resmungando o trovão da rebeldia, os espectros das bestas.

Hua! Haa! Hua!

Paralaxe esncalça-os atrás e açula-os, os lancinantes raios de cuja fronte são os escorpiões.

O alce e o iaque, os touros de Bashan e de Babilônia, o mamute e o mastodonte, eles vêm atropelando o mar afundado, Locus Mortis, Ominosa, vindicativa hoste zodiacal!

Eles mugem, sobrepassando as nuvens, córneos e capricórnios , os trombudos com os colmilhudos, os leonijubosos e os aspesgados, os focinhentos e os rastejantes, rodentes , ruminantes e paquidermes, toda esta movente mugente multitude, matadores do sol.

POBREZA

Um prato espatifa-se;

uma mulher esganiça-se;

uma criança chorominga.

Pragas de um homem rosnam ,

ressoam, cessam.

Figuras erram,

emboscam-se,

espiam dos cortiços.

VISÕES

Vimos Shakespeare megeramontado

e Sócrates galinhabicando.

Mesmo o omnissapientíssimo estagirita foi bocado,

bridado e montado

por uma mariposa do mar.

TUDO

Depois dos jogos de mistério do salão e os estralos puxados das árvores nós nos sentamos na otomana da escada.

Debaixo da visgueira.

Dois eram tudo.

ANARQUIA

Sou pela reforma da moral municipal

e dos dez mandamentos puros.

Novos mundos para os velhos.

União de todos ( o judeu, o muçulmano e o gentio).

Três acres e uma vaca

para cada filho natural.

Coches-fúnebres-salão a motor.

Trabalho manual compulsório para todos.

Todos os parques públicos abertos dia e noite.

Lava-louças elétricos.

Tuberculose, aluação,

guerras e mendicância devem cessar já.

Anistia geral,

carnaval semanal,

licença de uso de máscaras,

abonos para todos,

esperanto a fraternidade universal.

Não mais patriotismo de mama-bares

e impostores hidrópicos.

Dinheiro livre, amor livre

e uma igreja laica livre

num estado laico livre.

Raposa livre num galinheiro idem.

SER OU NÃO SER

Ser ou não ser.

A vida é sonho ‘stá finda.

Acaba-a em paz.

A vida continua.

Sou uma ruína.

Umas poucas pastilhas de acônito.

Cortinas baixadas.

A carta.

Depois jazer e repousar.

Nô-mais.

Eu hei vivido.

Adeus.

Adeusdado

AMARGAMENTE

Homem e mulher,

amor,

quer é isso?

Uma rolha e uma garrafa.

TEMPO

Um tempo,

tempos

e meio tempo.

VERBO

No início era o verbo

no fim o mundo semfim.

Abençoadas sejam as oito beatitudes.

BEATITUDES

Bebida

bife

batalha

boiada

buzina

berreiro

besteira

bispo.

ESTÉTICA

Estética e cosméticos

são para o boudoir.

Busco a verdade.

Pura verdade para um homem puro.

CHAMA

Uma mão-de-judas

de esqueleto estrangula a luz.

A luz verde esvai-se

em malva.

A chama de gás geme silvando.

OBSERVAÇÃO

Observa.

Isto é o seu sol adequado.

Pássaro noturno

sol noturno

cidade noturna.

Procura-me Zuzé! Zzz.

CASULO

De olho o casulo bivalente da mulher é pior.

Sempre aberto Sésamo.

Aí porque teme a bicha,

ou coisas rastejantes.

Entretanto

Eva e a serpente se contraditam.

Não como fato histórico.

Analogia óbvia com a minha idéia.

As serpentes também são glutonas de leite de mulher.

INSTINTO

O instinto rege o mundo.

Na vida.

Na morte.

IMORTAIS

Nós imortais,

como hoje viste,

não temos tal lugar

nem pêlos ali.

Somos petrifrias e puras.

Comemos luz elétrica.

ENCANTO

Quebraste o encanto.

A gota que transborda.

Se só houvera o etéreo

onde estaríeis vós todas,

postulantes e noviças.

Reclusa não convicta,

como asno que micta.

AMORIVERBOS

Cochichando amoriverbos

cochicham labilambendo

liquiloquentes,

papôulicos plachechapes.

VÔO

Não, eu voava.

Meus inimigos sobre mim.

E sempre há de ser.

Mundo sem fim.

JOGADORES

A multidão ladra de jogadores de dados,

tudo-ou-nada,

de porrinheiros-de-três,

de trapaceiros.

Açuladores e cercadores,

espantadores roucos de chapéus altos de mágicos

berram ensurdecedoramente.

TURFE

Um cavalo escuro,

desmontado,

salta como um fantasma além da chegada,

a crina lunespumando,

as pupilas de estrelas.

A manada segue,

uma tropa de montadas escabreando-se.

Cavalos esqueletos:

Cetro, Máximo II, Zinfandel,

Shotover do Duque de Westminster,

Repulse, Ceilão do Duque de Beaufort,

prêmio de Paris.

Anões os cavalgam,

de armaduras ferrugentas,

saltejando,,

saltejando nas celas

Último numa garoa de chuva,

um rocim isabela esbofado,

galo do Norte, o favorito,

boné mel, jaqueta verde,

mangas laranja,

Garret Deasy montando,

crispando as rédeas,

bastão de hóquei à mão.

Seu rocim,

tropeçando em pés alviplainados, troteja ao longo da pista pedregosa.

VENCEDOR

Pino erecto,

a cara unhada

engessada com selos postais,

brande o bastão de hóquei,

os olhos azuis chispeando no prismático do lustre

no que sua montada saltita

perto num galope aprendiz.

Per vias rectas.

CIRANDA

De um canto as horas matinais escorrem,

aurilanudas,

esguias,

em azul meninesco,

vespicintadas,

de inocentes mãos.

Lépidas dançam,

girando suas cordas de saltar.

As horas merídias

seguem-se-lhes em ouro âmbar.

Rindo em ciranda,

suas grandes travessas cintilando,

prendem o sol em espelhos zombeteiros,

erguendo os braços.

CIRANDA II

As horas matinais e merídias valsam em seus lugares,

virando-se, avançando umas para as outras,

modelando as curvas,

inclinando-se vis-à-vis.

Cavalheiros atrás delas arqueiam

e suspendem os braços,

com as mãos descendentes sobre,

tocando,

levantes de suas espáduas.

CIRANDA III

As horas crepusculares avançam,

de longas terrestrissombras,

dispersas,

demorando-se,

languidoculadas,

sua faces delicadas com cípria

e uma rosa desmaiada falsa.

Estão em gaze cinza

com escuras manchas morcegas

que estremecem à brisa terral.

CIRANDA IV

As horas noturnas esgueiram-se

para o último lugar.

As horas matinais,

merídias e crespusculares

retiram-se ante aquelas.

Que estão mascaradas de cabeleira

com adagas e braceletes

de campainhas surdas.

Cansadas,

elas se cobremquecobrem com véus

CIRANDA V

Germinando-se,

recuando,

com mãos intercanbiantes,

as horas noturnas enlaçam-se,

cada uma de braços arqueados,

num mosaico de movimentos.

CIRANDA VI

Justagarrados

rápido mais rápido

em cintilibrilhischispeantes girâdolas

eles espalhipilhidisparam amontoadamente.

Barrabum!

KINCH

Com sutil sorriso da loucura da morte

Kinch matou seu canicorpo

de cadelicorpo.

Ela esticou as canelas.

Lágrimas de manteiga melosa

caem dos seus olhos no bolinho.

Nossa grande doce mãe.

Ipi oinopa ponton.

PALAVRA

Dize-me a palavra,

mãe,

se a sabes agora.

A palavra sabida de todos os homens.

CAOS

Levanta seu estoque

alto com ambas as mãos

e estilhaça o lustre.

A lívida flama final do tempo ressalta

e, na escuridão conseguinte,

a ruína de todo o espaço,

vidro partido

e alvenaria ruindo.

CONVITE

Vocês são meus convidados.

Os inconvidados.

Por virtude do quinto George

e sétimo Edward.

Culpa da história.

Fabulada pelas mães da memória.

FOGO !

Chamas sulfúreas saltam.

Nuvens densas passam rolando.

Pesados canhões Gatling ribombam.

Pandemônio.

Tropas deslocam-se.

Galopes de cascos.

Artilharia.

Comandos roucos.

Sinos clangoram.

Apostadores gritam.

Beberões berram.

Putas urram.

Sirenes silvam.

Clamores de bravura.

Guinchos de moribundos.

Picões colidem com couraças.

Ladrões roubam os massacrados.Aves de rapina,

ondeando do mar,

pairam piando, alcatrazes,

cormorões, abutres, açores,

galinholas trepadeiras, falcões reais,

esmerilhões, tetrazes, aurifrísios,

gaivotas, albatrozes e gansos bernacos.

O sol da meia noite escurece.

A terra treme...

... Um abismo se abre num bocejo silente.

NOSTOS

PARTE III

PÃO

Pão,

substância da vida,
ganha teu
pão,

oh ! dize-me,

onde há pão da fantasia ?

No Rourke o padeiro,

é o que se diz.

IMPOSTURA

Os sons são imposturas.

Como os nomes :

Cícero, Podmore,

Napoleão, senhor Goodbody,

Jesus, senhor Doyle.

Shakespeares eram tão comuns quanto Murphies.

Que é que há num nome ?

E qual é acaso o seu nome ?

PÍLULAS

Vi um chinês uma vez

que tinha umas pilulinhas

como mástique e que botava elas na água

e elas abriam,

e cada pílula era uma coisa diferente.

Uma era um navio,

outra era uma casa,

outra era uma flor.

Ratos cozidos na sopa

os chineses fazem.

COMÉRCIO

Neste país

as gentes vendem muito mais

do que ela jamais o fez

e fazem excelentes negócios.

Não temas o que vende o corpo

mas não tem poder para comprar a alma.

Ela é má mercadoria.

Compra caro e vende barato.

O QUÊ ?

Em manuscrito destrinclinado ,

vertical e sinistroverso:

hotel da Rainha,

hotel da Rainha,

hotel da Ra..

INSTRUÇÃO DIRETA

Ela seguia não tudo,

uma parte do todo,

dava atenção com interesse,

compreendia com surpresa,

com cuidado repetia,

com maior dificuldade se lembrava,

esquecia com facilidade,

com dúvidas recordava,

re-repetia com erro.

EXEMPLO

Ele desgostava de guarda-chuva em chuva,

gostava de mulher com guarda chuva,

desgostava de chapéu novo em chuva,

gastava de mulher com chapéu novo,

ele comprou chapéu novo em chuva,

ela levou guarda chuva com chapéu novo.

VAI

Vai, vai

vai teu caminho,

vai em seguro,

vai com cuidado.

SILENTES

Silentes,

contemplando cada um o outro

em ambos os espelhos da carne

recíproca de suasdelenãodele

mesmas caras.

SOM

A dupla reverberação de pés retirantes

na terra celestinada,

a dupla vibração de um berimbau

na alameda ressoante

REVERSÃO

A necessidade da ordem,

um lugar para cada coisa

e cada coisa no seu lugar:

a deficiente apreciação da literatura por parte das mulheres:

a incongruidade de uma maçã

encunhada num caneco

e de um guarda-chuva fincado numa latrina:

a insegurança de esconder

qualquer documento secreto

atrás, debaixo ou entre

as páginas de um livro.

DESEJO

O tardio da hora,

tornada procastinatória:

a obscuridade da noite,

tornada invisível:

a incertitude dos caminhos,

tornados perigosos:

a necessidade do repouso,

obviando ao movimento:

a proximidade de um leito ocupado,

obviando à busca :

a antecipação do calor

(humano)

temperado com o frescor

(do linho),

obviando ao desejo e tornados desejáveis;

a estátua de Narciso,

som sem eco,

desejado desejo.

LEITO

Com circunspecção,

qual invariavelmente

quando entrava numa habitação

(sua própria ou não sua própria):

com solicitude,

sendo velhos

as molas superespirais e o colchão,

os elos de latão

e os pendentes raios de víbora folgados

e trêmulos sob pressão e tensão:

prudentemente,

qual entrando um covil

ou emboscada de luxúria ou cobra:

levemente,

o menos a perturbar:

reverentemente,

o leito da concepção e do nascimento,

da consumação do casamento

e da quebra do casamento,

do sono e da morte.

LEITO II

Nova roupa de cama limpa,

odores adicionais,

a presença de uma forma humana,

mulheril,

dela, a marca de uma forma humana,

macha,

não sua,

algumas rosquinhas,

algumas migas de carne enlatada,

recozida,

que ele removeu.

DELITOS

Como menos repreensível que o roubo,

assalto em estrada,

crueldade com crianças e animais,

obtenção de dinheiro sob falsos pretextos,

fornicação,

malversação,

prevaricação com dinheiro público,

abuso de confiança pública,

simulação de doença,

lesão deliberada,

corrupção de menores,

difamação criminosa,

chantagem,

contempto da justiça,

incendiarismo, traição, felonia

amotinamento em alto mar,

violação de domicílio,

arrombamento, evasão da prisão,

pratica de vício contra a natura,

deserção das forças armadas em ação,

prejúrio, caça e pesca ilícitas,

usura,

inteligência com os amigos do rei,

falsificação de pessoa,

assalto criminoso,

assassínio,

homicídio voluntário e premeditado.



REFLEXÕES

A preordenada fragilidade do hímem,

a pressuposta intangibilidade da coisa em si:

a incongruidade e desproporção entre

a autoprolongante tensão da coisa proposta

a ser feita e a autoaliviante relaxação da coisa feita:

a falazmente inferida debilidade da fêmea:

a muscularidade do macho:

as variações do códigos éticos:

a transição gramatical natural

envolvendo a não alteração do sentido

de uma proposição pretérita

aorista

(analisada como sujeito masculino,

verbo transitivo onomatopéico

monossilábico

com objeto direto feminino))

de uma voz ativa

em sua proposição pretérita

aorista

correlativa
(analisada como sujeito feminino,

verbo auxiliar

e particípio passado onomatopéico

quasimonosilábico)

em voz passiva:

O produto continuado

de seminadores por geração:

a continua produção de sêmen por destilação:

a futilidade do triunfo

ou protesto ou vindicação:

a inanimidade da virtude exaltada:

a letargia da matéria nesciente:

a apatia das estrelas.

SATISFAÇÃO FINAL

Satisfação ante a ubiqüidade

nos hemisférios terrestres oriental e ocidental,

em todas as terras habitáveis

e ilhas exploradas ou inexploradas

( a terra do sol da meia-noite,

as ilhas dos bem-aventurados,

as ilhotas da Grécia,

a terra da promissão)

de hemisférios adiposos posteriores femininos,

redolentes de leite e mel

e de calor excretório sangüíneo e seminal,

reminiscentes de famílias seculares

de curvas de amplitude,

insusceptíveis de modos de impressão

ou contrariedades de expressão,

expressivos de muda

imutável madura animalidade.

SINAIS

Uma erecção aproximativa:

uma adversão solicita:

uma elevação gradual:

uma revelação tentativa:

uma contemplação silente

DEPOIS

Ele beijou os fornudos

ricudos

amareludos

cheirudos

melões de seu rabo,

em cada fornido melonoso hemisfério,

na sua riquega amarrelega rega,

com osbcura

prolongada

provocante

melonicheirosa osculação.

SINAIS II

Uma contemplação silente:

uma velação tentativa:

uma abaixação gradual:

uma aversão solícita:

uma erecção próxima.

HOJE

Hoje

quero dizer não não

sexta-feira é dia de má sorte

primeiro

eu quero arranjar a casa

um pouco de poeira se deposita

eu penso enquanto

eu durmo

a gente pode fazer música

fumar cigarrro

ou...a